Tota Maia
Tornamos-nos hoje, o país das manifestações. Para tudo temos uma. É um mecanismo democrático que demonstra a insatisfação ou indignação da sociedade contra a ausência do estado, e/ou de seus órgãos reguladores.
No momento a manifestação urbana mais importante se refere a preservação do Edifício Caiçara liderada por arquitetos, artistas plásticos, publicitários, etc, construído no fim da década de 30 pelo médico Waldemir Soares de Miranda.
Quero deixar claro, desde já, que sou favorável a manifestação, e contra a derrubada do edifício, e pelo o que ele representa em termos de escala, e tipologia estético-construtiva daquilo que um dia foi a Avenida Boa Viagem.
Imediatamente veio a tona um texto que escrevi enquanto conselheiro do CREA, para o jornal da entidade, na edição de Nº 65, pg 2, de Julho/Setembro de 2002, e que reproduzo no momento:
Arquitetura moderna: preservação e deformação
Diante de minha indignação contra mutilações ao patrimônio da Arquitetura Moderna, um amigo me confidenciou: qualquer um poderia “executar” o conceito modernista, enquanto na arquitetura antiga, a complexidade de esculturas e adornos tornava praticamente impossível a “execução” por um leigo. Finalmente fulminou: como se pode comparar uma arte elaborada a 500 ou 1000 anos, com outra de 50 ou 100 anos?
Percebi a confusão, infelizmente comungada pela maioria, primeiramente ao atribuir à técnica (execução) “status” de essência principal e posteriormente ao confundir “valor histórico” com “valor artístico”. No primeiro caso, as questões de cunho estético (proporção, equilíbrio, cor, modulação, etc.) são relegadas a segundo plano, em detrimento da “perfeição” do resultado. Os valores mais importantes, aqueles que remetem à alma ou à reflexão do artista sobre a época em que se vive quase sempre não são assimiladas.
Porém é sobre o segundo caso que quero me deter, pois remete a uma questão jurídica: até onde vão os direitos do proprietário, do autor, e o dever do poder público?
O proprietário de obras modernas age como leigo, e ao atualizá-las, “deprecia” seu próprio patrimônio, não respeitando (reconhecendo) seu valor artístico. Já que seu imóvel não possui “valor histórico” para ser tombado (preservado), no seu conceito, ele tem “o direito” de tomar qualquer atitude sobre a obra, embora não esteja capacitado para mensurar seu “valor artístico“.
Deveria caber ao poder público primeiramente julgar esse valor artístico, e posteriormente cuidar de edificações – de qualquer época ou idade – julgadas dignas de preservação, proibindo qualquer interferência sobre elas, sob pena da deterioração de um patrimônio, agora “público”.
As residências de “Gilberto Botelho“, obra de Heitor Maia Neto (Hoje Loja da Eudora, na Av. Domingos Ferreira), “Milton Medeiros“, projeto do Italiano Mário Russo (atual Banco Itaú, em Casa Forte), de “Salviano Machado” (antiga Odontoreale, na Agamenon Magalhães, hoje desocupada), obra de Delfim Amorim, e a de “José Carlos Pena“, de autoria de Acácio Gil Borsoi (na Rua Ávaro Pinto Carvalheira com Beira Mar, em Piedade), se encontram hoje num estágio irreversivelmente deteriorado, apesar de artisticamente serem bem superiores a boa parte das obras antigas tombadas e preservadas.
Recentemente recebemos no CREA-PE um processo referente ao edifício Villa Mariana, obra do arquiteto Wandenkolk Tinoco, que apesar de ser um IEP (Imóvel Especial de Preservação) teve seu conjunto sensivelmente prejudicado com a presença de uma repugnante guarita, e mesmo assim, foi aprovada pelos órgãos competentes. Ora, se não for para criar algum tipo de defesa ou julgamento estético para as reformas ou anexos, para que transformar a edificação em IEP? Transferir a responsabilidade ou a “culpa“ para o proprietário é, no mínimo, uma omissão covarde.
Não quero me estender ao direito do autor, esquecido e desrespeitado, mas é relevante que se mencione que a deformação da arquitetura moderna não atinge só a ele e a sua obra: também se faz sentir, em forma ainda mais perversa, na formação de novos profissionais. E isso, obviamente, se reflete na qualidade da produção da arquitetura atual.
Este texto, apesar de não se referir a obras demolidas ou a demolir, discute a preservação de algumas de inestimável valor artístico, que foram exemplos da arquitetura moderna recifense entre os anos 50 e 70, e que não sofreram qualquer tipo de “defesa” por parte dos órgãos reguladores, e que por esta razão, completamente deformadas.
O que me deixa perplexo é que não vimos ou vemos nenhum tipo de protesto em defesa deste patrimônio. A bela residência Vicente de Paula, projeto do renomado Oscar Niemeyer, ou o edifício Guajiru, de Borsoi e Vital, ambas na própria Avenida Boa Viagem, não sofreram qualquer tipo de manifestação contrária a sua demolição, até em preservação à escala e tipologia estético-construtiva deste momento da arquitetura, assim como o Caiçara.
A derrubada das casas de laje duplas de Heitor Maia (residência José Cordeiro de Castro e Tubal Valença), ou as de Delfim Amorim de lajes ligeiramente inclinadas coberta por telhas tipo canal (residências Serafim Amorim e Manuel Figueira), ou tantas outras exemplares de Borsoi, Russo, Wandenkolk, Vital, Reginaldo, etc, apagaram um período em que existia a valorização da arquitetura residencial horizontal moderna, regionalizada e voltada para os trópicos. Pouquíssimos exemplos ainda possuímos para este momento histórico da cidade, época em que ainda morávamos em casas.
Não devemos preservar apenas o que é antigo. Devemos preservar o que é importante.
Sinceramente, não troco nenhuma obra destes arquitetos pelo o projeto do Edifício Caiçara. O aprendizado através dos trabalhos destes grandes mestres, sim, foi importante para a minha formação, e me faz sentir orgulho de ser arquiteto. E não há qualquer manifestação em defesa desse legado.
Tota Maia é arquiteto
Fonte: Site IAB-PE