Por Sonia Rabello*
A Câmara Municipal do Rio de Janeiro anunciou em seu Diário Oficial a realização de Audiência Pública sobre o Projeto de Lei Complementar nº 72/22 [1], que diz tentar viabilizar a construção do Parque Municipal de Inhoaíba [2]. Para tanto, o projeto de lei prevê o uso dos instrumentos da Operação Urbana Consorciada e de Transferência de Potenciais Construtivos de Inhoaíba para Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio. A operação configura-se como um verdadeiro imbróglio urbanístico, e choca a todos que têm qualquer expectativa de segurança jurídica quanto ao planejamento urbano da Cidade, que está sendo rediscutido, no momento, através da nova proposta de Plano Diretor [3] que tramita na Câmara de Vereadores.
O Projeto já foi aprovado em primeira votação e, como de costume, as questões fundamentais que o envolvem são deixadas para às vésperas da 2ª votação; esta definitiva. O projeto já recebeu, até o momento, 43 emendas, o que o torna tudo muito mais confuso para qualquer um saber o que sairá dali aprovado!
Mas quem não quer mais um parque, não é mesmo? Contudo, com o “doce melado” do Parque vem mais uma (infeliz) lambança urbanística, com recheios de misteriosos negócios imobiliários não esclarecidos. Algumas questões graves sobre isso já foram levantadas pela mídia, pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo – RJ (CAU-RJ) [4] e por alguns vereadores, e entre os quais podemos destacar:
- O encaminhamento do projeto de lei não tem transparência quanto aos donos dos terrenos que se beneficiarão através do mesmo; não há qualquer divulgação, minimamente clara, nem sobre quem são os proprietários dos terrenos em Inhoaíba, nem quem são os donos dos terrenos na Barra da Tijuca que poderão ter acréscimos de índices construtivos comprados para seus lotes. Em resumo; nenhuma informação sobre o levantamento fundiário das áreas envolvidas.
- O encaminhamento do projeto de lei não traz nenhuma informação sobre os cálculos feitos na Prefeitura, nem sobre as avaliações dos terrenos em Inhoaíba e nem sobre a relação de valores das benesses urbanísticas concedidas para donos dos lotes beneficiários na região da Barra da Tijuca. Há uma informação complementar da Secretaria Municipal de Coordenação Governamental sobre como seriam feitos os cálculos dos valores dos terrenos privados de Inhoaíba, sem que a lista deles tenha sido apresentada, e sem a tabela de equivalência! [5] E isso é essencial para garantir que o Município não esteja induzindo a um esquema de favorecimentos de um lado ou de outro, através de uma “bolsa” de recursos urbanísticos públicos, transformados em moeda. Para quem?
Aliás, todas estas negociações que envolvem recursos urbanísticos públicos, como índices construtivos, deveriam ter o parecer do Tribunal de Contas do Município (TCM), pois envolvem economicidade de patrimônio público, com os nomes e os CPFs dos envolvidos. Ou é secreto para a sociedade?
- Não foi encaminhado junto com o projeto de lei nenhuma informação sobre o projeto do Parque, seus custos de implantação e o orçamento municipal para tanto. Isto porque a Transferência de Potencial Construtivo de terrenos privados de Inhoaíba para Barra é uma transação de valores entre proprietários privados (art.10 do PLC nº 72/22), cabendo à Prefeitura unicamente intermediar as equivalências de valores entre eles. Ou seja, nenhum valor financeiro será dado, em tese, à Prefeitura nestas transações. Então, quanto custará a efetiva implantação do Parque, e com que dinheiro será feito?
Por isso, surgem as perguntas sobre a constitucionalidade deste projeto, uma vez que o Tribunal de Justiça do Rio vem afirmando, reiteradamente, que qualquer modificação na lei que trate do planejamento urbano da Cidade, envolvendo alteração de índices urbanísticos, tem que ter três requisitos essenciais de procedimento: estudos técnicos, audiências públicas precedidas de informações para discussão pública e oitiva do Conselho Municipal de Política Urbana – COMPUR. Este projeto de lei não cumpriu nada disso, apostando no cansaço que é fazer mais uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para derrubar a lei depois de aprovada!
Durante o processo legislativo somente os vereadores podem arguir a falta destes requisitos essenciais através de Mandado de Segurança. Não há notícia de que qualquer dos 51 vereadores já tenha se mobilizado para tanto. Portanto, sobrará trabalho, mais uma vez, para o Ministério Público e para a sociedade civil.
E, neste caso, há ainda mais agravantes. O primeiro deles é que a Câmara de Vereadores está em plena discussão do projeto de lei do novo Plano Diretor da Cidade que, no caso, envolve o estabelecimento, em seu texto, do zoneamento de todo o território com os índices construtivos gerais para todos. Espera-se que este PD seja aprovado ainda este ano.
Então, o que justificaria a Câmara aprovar um “puxadinho” legislativo, aumentando índices construtivos especiais somente para alguns terrenos na Barra da Tijuca, que receberão a transferência para aumento de gabarito e uso fora dos parâmetros gerais que está sendo estudado e discutido para toda aquela região, válidos somente por 36 meses?
Se não for um non sense, é muito estranho, já que está se criando um privilégio injustificado para somente alguns proprietários que poderão fazer uso de compra de potenciais construtivos para seus terrenos, antes da vigência do novo Plano Diretor da Cidade.
O segundo ponto é ainda mais espantoso. O PD em tramitação prevê a implantação, para toda Cidade, do índice básico privado de valor 1 (uma vez o lote). Com isto, todos os potenciais construtivos adicionais são recursos públicos a serem captados pelo instrumento da Outorga Onerosa do Direito de Construir. Então, por que a Prefeitura não espera a aprovação do PD, quando então os índices construtivos, tanto dos terrenos em Inhoaíba, quanto na Barra, serão públicos? Como se vê no projeto, o valor dos terrenos de Inhoaíba estão sendo avaliados pelos índices construtivos atuais, que são de domínio público, quando aprovado o novo Plano Diretor da Cidade!
Vigendo o novo Plano Diretor, o Município poderá assumir a captação dos valores dos recursos públicos dos potenciais construtivos de toda a Cidade, de forma clara e suficiente, tanto em um bairro, quanto em outro, e dentro dos parâmetros urbanísticos estabelecidos para todos na Cidade! Então, por que estão correndo para efetuar estas benesses antes do PD, com uma misteriosa operação através da qual nenhum recurso financeiro – afora, quiçá, os terrenos – entrará no patrimônio da Prefeitura? Não seria a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) mais proveitosa para a Prefeitura? Onde estão estas contas?
Além das demandas abordadas acima, existem outras questões jurídicas que a operação urbana proposta não atende, nem ao Estatuto da Cidade, nem ao Plano Diretor vigente, conforme foi mencionado pelo CAU-RJ na sua manifestação sobre o projeto: “qualquer OCU [Operação Consorciada] deverá constar o plano de operação urbana consorciada, identificando, entre outras coisas, o programa básico de ocupação da área, programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação, estudo prévio de impacto de vizinhança e forma de controle da operação, obrigatoriamente compartilhado com representação da sociedade civil”.
Para complementar, há que se dizer que o PLC nº 72/22 afronta explicitamente o art.90 do Plano Diretor da Cidade que exige que “As operações urbanas consorciadas deverão apresentar Avaliação Técnica Multidisciplinar no cumprimento do disposto no inciso V do art.33 da Lei 10.257/2001 – Estatuto da Cidade”. E continua em seu §1º com uma série de exigências, estudos e documentos que deverão compor esta Avaliação Técnica Multidisciplinar. [6]
E mais, o Plano Diretor da Cidade diz, categoricamente, no §3º do art.90, que este documento de Avaliação Técnica Multidisciplinar “será o documento de referência para realização de audiências públicas e para discussão do Projeto de Lei que institui a Operação Urbana Consorciada”. Onde ele está?
Finalmente, o art.91 do atual Plano Diretor da Cidade determina que as operações urbanas consorciadas sejam “constituídas pela área diretamente relacionada com sua finalidade e por sua área de influência ou de entorno imediato”. Desde quando a Barra da Tijuca é área de influência e de entorno de Inhoaíba? Ou seja, a operação urbana do Parque de Inhoaíba deve ser feita em Inhoaíba e no seu entorno; assim como as transferências de direitos de construir devem estar dentro desse perímetro, planejadas e executadas através de um projeto urbano consistente para aquela região!
Por estas e outras questões, a audiência pública anunciada pela Câmara de Vereadores jamais deveria ter continuidade antes de esclarecer para a sociedade todos estes questionamentos, publicando as informações de forma transparente para a compreensão de todo o projeto, bem como divulgando a Avaliação Técnica Multidisciplinar referida no Plano Diretor vigente na Cidade. Sem estes esclarecimentos prévios, a audiência marcada é mera formalidade, “prá inglês ver”. Tudo isto é um enorme pacote que só se encaminha para mais uma judicialização no planejamento da Cidade.
Por que o cumprimento das leis é tão difícil de ser absorvido e praticado pelos governantes da cidade, e que se dizem tão “democráticos”? Afinal, como vem se afirmando “a torto e a direito”, democracia é igual a Estado de Direito. E Estado de Direito é, simplesmente, cumprir a lei, seja ela constitucional, seja federal, estadual ou municipal. Tudo é lei!
*Sonia Rabello, jurista, Professora colaboradora do Lincoln Institute of Land Policy (EUA) no Programa de Capacitação para América Latina. Ex-procuradora-geral do município do Rio de Janeiro. Professora titular na FDir/UERJ (aposentada)