Retratos da Arquitetura
A paisagem urbana, constante criação
11 de outubro de 2013 |
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“Uma cidade é… uma ocorrência emocionante no meio ambiente”.
Esta frase – encontrada na Introdução do livro “A Paisagem Urbana” de Gordon Cullen – sintetiza o impacto que os aglomerados urbanos produzem sobre os cidadãos ao interagirem estes com a paisagem existente. Potencialidades cultivadas, condições naturais preservadas ou subjugadas criam obras significativas e que alcançam o enunciado de Cullen. A emoção surgirá na forma como os homens, urbanistas e paisagistas bem instrumentados, logram harmonizar a permanente tensão entre o espaço construído e o existente.
Tal harmonia, porém, não tem sido a constante na história da humanidade, que para assegurar sobrevivência e prosperidade, subjugou a natureza de forma violenta, exercendo atividades transformadoras, consagradas nas práticas industriais que passaram a ameaçar o meio ambiente. Movimentos preservacionistas, em face da possível escassez de recursos, alertaram os responsáveis pelas políticas urbanas, criando novas formas de lidar com os espaços, sobretudo as grandes florestas, os mananciais e os sítios naturais. Alternativas turísticas e discursos carregados de tardio remorso sustaram a ação predatória do homem, pois a natureza fora por ele ignorada. Um dos primeiros sinais positivos: as cidades jardins que realizariam, tanto quanto as cidades dormitórios no século XIX (conquista proporcionada pelos avanços do transporte), a transformação dos subúrbios e periferias em áreas qualificadas e não mais áreas de exclusão.
No terceiro mundo (e falaremos da experiência brasileira), os ecos de tais soluções falharam pela ausência de políticas sociais e de aparelhamento urbano, gerando desastrosas condições de assentamentos e oferta quase nula de mobilidade, transformando o pretenso núcleo salvador em mero desterro, senão fábrica de revolta social e degeneração do tecido urbano.
Cabe pensarmos então como será, em relação a vertiginosa urbanização, a marcha de um povo que habita um grande espaço repleto de desafios, mas de extraordinárias possibilidades naturais, como o território brasileiro, com mais de oito milhões de km² dos quais cerca de cinco milhões favoráveis aos assentamentos humanos. Como pensar o imenso e ambicionado território da Amazônia brasileira que ainda aguarda uma política de exploração sustentável compatível com as necessidades do país e da rarefeita população que o habita. As intervenções físicas nas suas florestas carecem de uma política capaz de atender seus habitantes e a integração político-econômica de seu território. A intangibilidade da mata amazônica e a forma de lidar com tão extenso território envolvem debates que parecem ignorar o crescimento da nação. E outras áreas a preservar padecerão da mesma problemática, ainda que existam recursos tecnológicos capazes de responder às políticas para o usufruto e bem estar das populações em crescimento.
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O Estado do Rio de Janeiro desfruta de pródigas belezas naturais, notadamente florestas e áreas litorâneas, apreciáveis contrastes entre mar e montanha. São belezas intocáveis cuja preservação ambiental exige quase um “cordão de isolamento”, deixando o homem afastado e transformado em mero expectador. Guardados como reservas, pulmões verdes, oferecem-se à visitação e à contemplação, um uso quase passivo e de amplas condições turísticas. Mas até quando resistirão intocáveis aos empuxos do crescimento da população? E até onde será lícita tal intangibilidade?
Ao erguermos nossas cidades, nem sempre a desejável integração entre paisagem natural e a construída obedeceu às normas hoje consagradas de harmonização, a indispensável ponte entre homem e natureza, sobretudo quando esta é pródiga em beleza. Nos grandes centros urbanos, o descaso e a especulação ignoraram a desenfreada ocupação e a quase eliminação das áreas verdes. As tragédias ecológicas, já comentadas nestes “Retratos…” (em Tetos Sem Risco”, Boletim nº 6), não deixam dúvida quanto tem saído cara essa negligência. No texto, lamentavam-se os desastres sociais, técnicos e políticos dos conjuntos em construção para atender às vítimas desabrigadas do morro do Bumba, em Niterói, RJ.
Profissionais de diferentes áreas, não apenas urbanistas e paisagistas, chocam-se com a lentidão e a ineficiência das autoridades diante dos desastres ambientais. Razões políticas, financeiras ou culturais explicam a omissão e, em decorrência, não apenas a natureza tem sido sacrificada. A própria paisagem histórica foi (e tem sido) criminosamente ignorada e até eliminada. Estaremos condenados a um caos inevitável?
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Evitando aqui o excesso de pessimismo, e buscando exemplos animadores, encontraremos pontos positivos particularizados na história da urbe carioca que poderão servir de lembrete e estímulo. Até porque o Rio de Janeiro (de fato, a histórica Muy Leal e Heróica) mereceu da UNESCO, em julho de 2012, um título que aumenta a responsabilidade de seus dirigentes: Patrimônio Cultural da Humanidade.
Assim, vejamos algumas obras que somaram, de modo feliz, a intervenção humana à generosa natureza:
Ainda no século XVIII, na condição de colônia portuguesa, tivemos a experiência do Passeio Público, encomendado a Mestre Valentim pelo Vice Rei Luiz de Vasconcelos e Souza. No século seguinte, o Rio ganhou o Jardim Botânico, uma feliz proposta do regente D.João, aqui instalado com sua corte ao fugir da investida de Napoleão sobre Portugal. Ainda nos anos de 1800, o país já independente, a cidade testemunhou, a cargo do major Archer, a regeneração da Floresta da Tijuca (antes ocupada por extensos cafezais), e que no século XX mereceu especial carinho de Raymundo Castro Maia, com apoio do prefeito Henrique Dodsworth. No segundo império, ganhou a cidade os jardins do Campo de Santana, a reforma paisagística da Quinta da Boa Vista e do Passeio Público obras a cargo de Glaziou.

Praça Tiradentes – Monumento à 1º Constituição – Um dos mais belos monumentos da Cidade, articulador do grande espaço em feliz implantação urbana
Belas praças e largos, valorizados por monumentos de grande significado artístico, como as praças Tiradentes e Floriano Peixoto, passaram a pontuar a cidade. Nos anos 1900, a revolução urbanística de Passos, e os trabalhos de ajardinamento e paisagismo nos governos republicanos, recuperaram os entornos da Lagoa Rodrigo de Freitas e realizaram obras na Zona Norte. Nos anos seguintes, podem ser citados o Jardim de Alá e a agregação à cidade de duas áreas pertencentes a particulares: o parque da Gávea e o parque Guinle. Neste, que abriga o belo Palácio das Laranjeiras, demonstrou-se ser exequível harmonizar paisagem natural e paisagem construída qualificada, com modernos conjuntos arquitetônicos. Impossível ainda não registrar que o Rio abriga, desde 1930, uma das maravilhas do mundo: a estátua do Cristo Redentor, no alto do Corcovado, obra que se proposta nos dias de hoje, escandalizaria os ecologistas.
Em nova fase política, a cidade ganha a partir dos anos de 1950, o Aterro do Flamengo, a mais destacada obra paisagística do governo Carlos Lacerda, na maravilhosa concepção de Reidy e de Burle Marx e, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, o Parque da Catacumba . Em 1974, foi criado o Parque da Pedra Branca (Decreto Lei 2377 de 28/06/74), uma área de preservação com superfície de 12.500 hectares, plena de mananciais para abastecimento da cidade e que se soma, como expressiva área verde, à já citada mata da Tijuca, dando ao Rio um raro privilégio: possuir a maior floresta urbana do mundo.
Em nossos dias, pretendendo buscar para o Rio um desenho urbano mais generoso, além da prometida renovação da área portuária, a cidade ganhou o Parque de Madureira, obra que marca as preocupações com a sustentabilidade, apagando o estigma de aspereza que se jogara sobre o subúrbio.
Certamente, uma lista incompleta e que aponta para as possibilidades de ofertar aos habitantes da Cidade melhor qualidade de vida e de espaço a partir do que a natureza lhes reservou.
Sabendo que os espaços enumerados vivem cercados de ameaças em sua preservação, além de se ressentirem de abandono imperdoável, resta inquirir como se comportarão agentes de intervenção na cidade e seus cidadãos em virtude da constante expansão e renovação. Intervir e recriar, preservar e somar serão os desafios permanentes de uma urbe que se renova.
Uma cidade que se constrói e reconstrói no cotidiano não cumprirá jamais os ideais de unidade absoluta sonhada pelos urbanistas. Raramente alguém se defrontará com a “folha em branco” posta sob os olhos de Lúcio Costa nos idos de 1950, quando um mapa de região virgem do Planalto Central, sem vegetação ou curso d’água, que merecesse destaque nos compêndios, estará disponível para o traço demiúrgico de quem desbrava e propõe que um sonho se transforme em risco. Não há a tabula rasa. O desafio é outro: uma urbe que se recria a cada instante e que conta com um histórico e expressivo patrimônio arquitetônico sujeito à ruína.
Afetada pela febre rodoviária, a cidade foi cortada por vias elevadas, oferta pragmática para o veloz deslocamento dos veículos, desastroso resultado ao gerar as “cavernas urbanas”, transformadas em abrigos de marginais e espaços insalubres. Nem mesmo esboçou-se a tentativa de implantar, nos vãos entre os apoios, equipamentos urbanos de finalidades comerciais ou culturais, como realizado em Berlim em sua exitosa reforma urbana. Aqui, permanecem tais espaços com o aspecto do descaso, da degradação e da insalubridade.
A incompletude da Avenida Presidente Vargas, com seus vazios desordenados e mal cuidados, e o retalhamento urbanístico da Avenida Rio Branco, que fez desaparecer boa parte do belo acervo eclético que a marcava, aguardam uma intervenção urbana coordenada e regeneradora. Entre derrubadas súbitas e construções inesperadas, palácios de vidro, aço e concreto, em aparente desordem volumétrica, rasgando as quadras, expõem feias empenas – feridas de um cotidiano.

Escola Nacional de Música – A empena cega, revelada após a demolição dos edifícios vizinhos, recebeu inesperado trompdoeil simulando a reconstituição da paisagem
Como um cenário novo, imensos panos cegos ofertam-se telas virgens a espera de intervenções. O que há para ser visto, o que o olhar adivinha sob as inóspitas superfícies? Proibidos os outdoors publicitários, perspectivas desenhadas sobre empenas cegas tentam recriar uma cidade fictícia que deseja apagar a feiura de seus blocos incompletos, indigentes na decomposição urbana. Será uma nova expressão?
Realisticamente, a cidade carioca pulsa, multiplica-se, mas adoece em suas esquinas e ressurge entre escombros, esperando ser acalentada por seus dirigentes e identificar-se como uma “ocorrência emocionante”.
O mesmo Cullen que foi citado na abertura destas linhas nos faz meditar, ao dizer em sua obra:
“Os anúncios e publicidades nas ruas, embora quase totalmente ignorados pelos urbanistas, constituem uma contribuição (bastante óbvia e frequente) para a paisagem urbana.”
Seria um fato consumado conviver com o improviso ou surgem novas formas de interação entre cidadãos e meio urbano, impondo uma “nova estética”? Surge um inesperado personagem que não se restringe ao papel de espectador e decide participar, de forma dinâmica, na recriação da imagem urbana. Uma fala das ruas. Um grito? Um protesto? Muralistas do caos? Ou serão os graffiti a áspera e inesperada poesia-mensagem que nos trazem vozes, até então, inaudíveis?
Caberá aos arquitetos, urbanistas e paisagistas, aparentemente alijados da cidade que explode, meditar sobre a estranha parceria que se infiltrou não apenas nas ruínas de uma urbe em transformação mas como partícipe do espaço construído.