Retratos da Arquitetura
Ampliando os espaços da urbanidade
12 de julho de 2013 |
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Ao longo de sua história, a arquitetura jamais renunciou a buscar o belo e a perfeição. Do abrigo pragmático ao marco simbólico, reconhecida como fato cultural, sua trajetória revela essa demanda, legado que a partir das rigorosas proporções dos templos gregos, passa pelo mundo romano até desaguar na modernidade e continua presente, como cenário para o Homem na história. Em nossos dias, mesmo o paroxismo tecnológico das grandes torres e as formas contorcidas das edificações, justificadas no discurso do desconstrutivismo, propõem uma nova estética, não afastada intelectualmente de ideais perfeccionistas. A forma perfeita deverá responder aos anseios de um ser supostamente perfeito, apto a usufruí-la. Lembramos as proporções cultivadas por Vignola, o homem idealizado por Da Vinci e, já no século XX, o Modulor, de Le Corbusier, modelos de proporções arbitradas que aplicados às construções resultariam em belos edifícios capazes de extasiar e valorizar a vida humana.

Da Vinci e Le Corbusier – Em busca do Ser perfeito. Do livro Dimensões humanas dos espaços interiores – J. Panero e M Zelhik – Editora Gigli
Implícito nestas propostas, além do impacto visual, estão o natural e o pleno desfrute das belas formas e dos belos espaços por aqueles que gozassem de ampla condição física. Pórticos e escadarias, rampas e trajetos monumentais ofertam-se aos que têm fôlego, energia, vitalidade e, quase sempre, relativa juventude para seu completo usufruto. À velhice e à invalidez caberiam apenas os louros da sabedoria, as reflexões sobre o passado e uma respeitosa distância do espaço cotidiano.
A partir da metade do século XX, os avanços científicos na garantia da salubridade, o progresso da medicina preventiva e as conquistas higiênicas podem oferecer à humanidade melhor saúde física, um passaporte para a longevidade e a possibilidade de participar do cotidiano de forma ativa. Os conceitos de doença e de incapacidade tornaram-se relativos e o lema da inclusão se faz presente, sem ranços de favor ou de piedade. Assim, no dia a dia, uma leva numerosa de pessoas – antes ignorada ou marginalizada – passou a contribuir de forma eficaz à vida social, superando os riscos da marginalização.
Vencidas as barreiras do preconceito, após demandas corajosas por parte dos até então afastados do cotidiano, aguarda-se que chegue, de forma plena, à consciência dos que constroem o espaço habitado a necessidade de encontrar respostas para a desejada inclusão.
A mobilização internacional respondendo aos que, afinal, tiveram suas vozes ouvidas, gerou dispositivos legais e recomendações técnicas, visando superar as reconhecidas barreiras e ampliar os níveis de cidadania. O design industrial passou a responder com mais eficácia às novas exigências, adaptando e recriando objetos, veículos e mobiliário que facilitassem as atividades daqueles antes afastados do convívio social, atitude tão pragmática quanto racional e adequada aos dias agitados que vivemos.

Barreiras em edificações – Cartilha de Orientação (Núcleo Pro-Acesso). Acessibilidade para todos: uma cartilha de orientação – realização Núcleo Pro-Acesso
Inevitavelmente, a arquitetura das cidades foi posta em cheque e dispositivos legais incorporados às legislações urbanas foram introduzidos para superar as barreiras que se infiltraram nas cidades e geraram condições adversas para todos os cidadãos, dispusessem ou não de todas as capacidades físicas.
A acessibilidade e a mobilidade urbana, colocadas em tela, fizeram gerar um aparato legal que baliza e alimenta planos e projetos, quer em detalhes quer no seu sentido mais geral, exigindo veículos apropriados, mobiliário urbano accessível e sinalização de trajetos. Foram afinal reconhecidas as “barreiras urbanas”, negativas às propostas de inclusão, e assim procuradas as alternativas à sua existência.

Decreto 5296 de 02/12/2004 – Superando barreiras no transporte urbano. Desenho Extraído do Corpo do decreto
Organismos internacionais e nacionais empenharam-se na tarefa. A Organização das Nações Unidas (ONU) assumiu recomendações que tornam o espaço habitado e a arquitetura nele erguida favoráveis ao desfrute dos cidadãos, incapacitados de forma permanente, ou não, de mobilidade.
O número de pessoas com alguma deficiência impedidas de participar de modo pleno do cotidiano ainda é muito elevado. Segundo Censo do IBGE, realizado em 2010, cerca de 24% dos brasileiros padecem de alguma forma de deficiência. A constatação mobilizou entidades civis e o poder público no sentido de evitar-lhes a marginalização, surgindo movimentos e propostas de legislação para enfrentar a questão. No Estado do Rio de Janeiro, su a Assembléia Legislativa (Alerj) criou a Comissão de Defesa da Pessoa com Deficiência, visando garantir-lhes a igualdade de direitos e oportunidades, superando barreiras institucionais ou físicas. O conjunto de normas procura orientar autoridades e outras organizações da sociedade civil na concretização daquela política.
Na legislação existente, podemos relacionar ainda a NBR 14.022, válida desde 2009, que aborda a acessibilidade em veículos, detalhando procedimentos e espaços que acolham os deficientes com conforto. Os Decretos Municipais nº 5.296, de 02/12/2004, que estabelece prioridade de atendimento e critérios básicos para promover a acessibilidade e o nº 29.896, de 23/09/2008, apoiado nas Leis Federais 10.048, de 8/11/2000 e 10.098 de 19/12/2000 que obrigam a acessibilidade em toda a frota de veículos do Serviço Público de Transporte Coletivo de Passageiros. O mesmo Decreto nº 5.296 ainda contempla “…condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos serviços de transporte…”.
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Podemos admitir que há uma legislação, se não perfeita, que de fato contempla o propósito da inclusão. Restaria aplicá-la de forma efetiva.
Persistem obstáculos de diferentes naturezas em nossas cidades e em seus edifícios. Nestas linhas, nos limitamos a observar o que acontece na cidade do Rio de Janeiro, reconhecendo insatisfatória a oferta de “espaços inclusivos” no meio urbano, isto é, que permitam seu uso por qualquer cidadão, deficiente ou não, nas principais cidades brasileiras, paradigmas para os demais centros urbanos.
Para se chegar a uma arquitetura inclusiva, isenta de barreiras a deficientes, aguarda-se uma assimilação, talvez cultural, para que espaços e seus componentes permitam o pleno uso. No capítulo da mobilidade urbana, o quadro é historicamente insatisfatório e adverso, flagrado nas vias públicas e na oferta de equipamentos apropriados. Há mais de meio século, a prioridade dada ao transporte individual prejudicou os espaços urbanos a limites insuportáveis. O rodoviarismo que imperou nos anos 60 e 70 do século XX e o desprezo pela cidadania em sentindo mais amplo, gerou áreas urbanas degradadas e, em muitos casos, apenas transferiu problemas de circulação para outras áreas. O privilégio dado às pistas de rolamento em seus traçados e pavimentações (nem por isto, exemplares) resultou em calçadas destruídas e vias dotadas de sinalização que privilegiam o fluir dos veículos e dificultam o ir e vir dos pedestres.

Macas especiais – design do arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé. Do livro “Arquitetura do Lelé: fábrica e invenção” – Imprensa Oficial – São Paulo
Travessias apresentam sinalização mal sincronizada. Cadeirantes e deficientes visuais e auditivos, postos em risco, são alijados da autonomia no ir e vir urbano. Multiplicam-se, para eles, as dificuldades. As ruas de pedestres, favoráveis ao comércio e que pretendem oferecer alternativa de melhores condições de fluxo e segurança aos que não se utilizam dos veículos, tornam-se verdadeiros campos minados com seus calçamentos impróprios, tampões danificados, meios fios irregulares e rampas improvisadas. Cadeirantes ou não, os que por elas circulam sujeitam-se a acidentes graves.
Há poucas décadas, um dos projetos urbanos mais polêmicos entre nós, o Rio-Cidade – patrocinado pela Prefeitura e organizado pelo IAB/RJ – mostrou que algumas lições haviam sido assimiladas, embora perdurassem lacunas lamentáveis. Mesmo reconhecendo tentativas importantes no design do mobiliário urbano, de um modo geral, os projetos ficaram em dívida com as propostas de inclusão para os deficientes.
E é importante frisar que, na oportunidade, a pedido de entidades representantes de deficientes, o Edital do concurso incorporou proposições objetivas quanto à acessibilidade e mobilidade urbanas. Que não se debitem as eventuais falhas à competência dos excelentes escritórios profissionais que se apresentaram no certame. Trata-se mais de um processo de assimilação cultural, como já foi lembrado, nem sempre fácil a profissionais que sempre lidaram com a idealização da beleza e da perfeição.
Pontos relativos à macro mobilidade urbana merecem especial atenção. Um deles, a revisão das normas de zoneamento de modo a propiciar ou estimular a criação de moradias próximas às áreas de oferta de trabalho, apoiando a medida em uma política de transporte de massa. Outro ponto a indagar é como a cidade se prepara para acolher as Paraolimpíadas, sem dispor de rede adequada e equipada em termos de macro mobilidade.
Observação marginal ao que se vem abordando, é que ampliado o índice de longevidade da população, mesmo pressupondo um padrão de higidez mais elevado, as limitações físicas serão inevitáveis. Assim, o espaço arquitetônico residencial deve responder àquelas contingências. Portas de dormitórios com larguras de 70 centímetros, ou as de banheiros, com 60 centímetros, ainda permitidas em nosso Código de Obras, dificultam a passagem de cadeirantes (idosos ou deficientes) em seu cotidiano. A nova legislação prometida, em processo de discussão e mostrada aos arquitetos nas palestras feitas no CAU/RJ, deverá contemplar muitas destas demandas. E que a indústria da construção e os investidores do setor mantenham os olhos em seus produtos de modo a adequá-los aos propósitos de inclusão de usuários.
Observação marginal ao que se vem abordando, é que ampliado o índice de longevidade da população, mesmo pressupondo um padrão de higidez mais elevado, as limitações físicas serão inevitáveis. Assim, o espaço arquitetônico residencial deve responder àquelas contingências. Portas de dormitórios com larguras de 70 centímetros, ou as de banheiros, com 60 centímetros, ainda permitidas em nosso Código de Obras, dificultam a passagem de cadeirantes (idosos ou deficientes) em seu cotidiano. A nova legislação prometida, em processo de discussão e mostrada aos arquitetos nas palestras feitas no CAU/RJ, deverá contemplar muitas destas demandas. E que a indústria da construção e os investidores do setor mantenham os olhos em seus produtos de modo a adequá-los aos propósitos de inclusão de usuários.
Arquitetos e urbanistas e designers, em geral, terão papel importante a desempenhar e, certamente, estarão conscientes e preparados. Os órgãos de classe deverão se mobilizar, através de cursos, palestras e de aliança com as entidades que se dedicam a causa da inclusão e da superação das barreiras, estimulando nos profissionais o compromisso com um nobre campo de trabalho.
Para esta breve exposição, contamos com a colaboração da Arquiteta Regina Cohen, autora e co-autora de importante obras relativas á acessibilidade e mobilidade urbanas.