Retratos da Arquitetura
As vias Trans: um futuro para a mobilidade?
17 de março de 2014 |
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Quando o território do município do Rio de Janeiro abrigava o jovem Estado da Guanabara (1960), aos cariocas foram prometidos os milagres da Equística, panaceia científica trazida pelo grego Constantin Doxiadis. Um reticulado de vias expressas cortava o território e articulava-se com outras vias coloridas, de alta mobilidade, mas que desprezavam o patrimônio construído da quadricentenária urbe. A rede estimulava a grande produção e o consequente consumo dos veículos individuais atingiu seu ápice com a febre dos elevados e trevos de inegável eficiência desprezando a eventual corrupção do espaço urbano. Em texto anterior, destacamos o ousado plano no elenco de outros tantos que afetaram a vida urbana dos cariocas. As linhas cromáticas que passaram a articular o sistema viário carioca (vermelha, amarela e lilás) são heranças daquelas propostas com inegáveis vantagens para a circulação de veículos e, convém ressaltar, alguns prejuízos no espaço construído. Áreas tradicionais da cidade foram quase apagadas do mapa ou tornaram-se ruínas.
No novo século, cumprindo seu Plano Diretor, os cariocas reencontram-se com obras viárias de grande porte, desta vez batizadas com o prefixo Trans, que enfatiza e sugere mobilidade de alta eficiência. Observando a teia formada pelas vias é possível associá-la à imagem da proposta de Doxiadis. São elas:
- Trans-Brasil – partilhará o leito da Avenida Brasil. Na verdade uma ampliação do corredor de transporte, ofertando modal de maior eficiência para os usuários (BRT). As obras deverão ser iniciadas ainda este ano e sua inauguração é prevista para 2016;
- Trans-Olímpica – realizará uma direta ligação da Vila Olímpica, na Barra da Tijuca, aos centros de disputa nos jogos programados para 2016, no subúrbio carioca (Deodoro-Barra). O trajeto desta via implicará na abertura de quatro túneis no maciço da Pedra Branca (área de preservação ambiental). Deverá integrar-se à Supervia, em Deodoro. Iniciada em 2012, também deverá ser inaugurada em 2016;
- Trans-Carioca – fará a ligação direta entre a Barra e o Aeroporto Internacional Tom Jobim e apresenta obras arrojadas, como a ponte estaiada Cardeal Don Eugênio Sales. A pista destinada ao BRT, segundo a prefeitura quase concluída, deverá ser entregue ainda em 2014;
- Trans-Oeste (a mais extensa) – se superpõe à Avenida das Américas, na Barra, e fará a ligação com a Cidade Olímpica, prolongando-se até Sepetiba e Campo Grande. Já inaugurada, mas com poucas estações em uso, longe de sua conclusão – hábito político insuportável para os cidadãos/usuários/contribuintes.
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No pequeno território carioca – uma geografia difícil, que abriga maciços e florestas de função ambiental e paisagística – a macro mobilidade chega tangida e apressada por fatores externos, o que surpreende o cidadão comum e os urbanistas. Eventos internacionais forçam autoridades a produzir soluções convenientes aos patrocinadores dos eventos e, quase em decorrência, aos habitantes – uma inversão perversa do que seria um planejamento mais comprometido com os cidadãos. Embora as autoridades afirmem o óbvio, isto é, que as obras beneficiarão perenemente a cidade, cabe perguntar: caso o Rio não sediasse os eventos, que tratamento seria dado à Mobilidade Urbana em suas diferentes dimensões? A Barra permaneceria dependendo exclusivamente do carro particular? Vamos lembrar que o Rio integra, há meio século, um corredor de variados e intensos problemas que é a Região Metropolitana.
Quanto aos benefícios conquistados, resta a discussão de como otimizar seus resultados. As vias parecem obedecer a lógica da ligação de dois pontos extremos – embora em seu curso – ao longo de diferentes zonas da cidade, rasguem um tecido com ocupações regulares ou não. Neste último caso, surgem remoções sempre polêmicas, que retardam e encarecem as obras, desgastando a imagem e os propósitos dos seus responsáveis.
O quadro acima relaciona de forma sintética algumas das características das obras, mostra vias de natureza similar, cruza territórios diversos e apresenta os diferentes custos e as alterações dos mesmos. Questões geográficas, geológicas e fundiárias, justificam a diversidade a ser considerada na metodologia de planejamento. No quadro verificamos que o quilômetro da TransOeste tem custo menor do que o da TransCarioca. Contudo, a primeira tem quase duplicado seu orçamento, e o da segunda um acréscimo próximo a 13%. Orçamentos imperfeitos? Alterações nos projetos? Estaria a diferença na metodologia dos projetos ou na imperfeição dos orçamentos?
Entregues aos habitantes do Rio, vias de tal porte exigem manutenção proporcional a seu uso e a seu destino, providência que, a julgar pela condição das ruas e avenidas cariocas (principalmente nas Zonas Norte e Oeste), não tem sido uma tônica da administração municipal.
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A população foi posta diante de um dilema: regozijo pela oferta de obras maciças na infraestrutura de mobilidade (metrô, linhas especiais de ônibus, alterações de trânsito, grandes vias destinadas a novos modais etc.) e reservas face aos grandes eventos programados para a Cidade-Palco: o Mundial de Futebol e os Jogos Olímpicos. O cidadão comum poderá indagar: se não ocorressem tais disputas, o Rio e suas complexas cercanias continuariam entregues ao caos urbano? E resta a dúvida legítima: encerradas as festas, sua manutenção estará garantida? O episódio do Maracanã (estádio Mário Filho), onde predominaram as posturas da FIFA, transformando os órgãos do patrimônio em submissos cumpridores das tarefas de um “caderno de encargos”, não foi suficientemente absorvido pela população.
As redes sobre trilhos parecem então relegadas a um plano secundário. A extensão linear do metrô aponta para deficiências futuras com a sobrecarga de passageiros o que, mais uma vez, exige a implantação de modais alternativos. As Trans anunciam modais modernos, como o BRS, por exemplo, e que ao longo da TransOeste tem apresentado graves problemas ao percorrer vias sem a necessária orientação e segurança para pedestres e passageiros.
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A cidade como organismo vivo não para de se transformar rapidamente, em desafio à urgência das obras e à eficiência dos governos. A passagem das Trans no tecido urbano exigirá respostas urbanisticamente qualificadas e um trabalho contínuo, ao longo de administrações sucessivas para que assumam um compromisso de continuidade e conclusão dos trabalhos.
O reajuste das cifras anunciadas para as obras, que mal se iniciam, sugerem uma deformação do processo de planejamento. Onde estarão nossos orçamentistas? Os órgãos representativos dos arquitetos e urbanistas, CAU/RJ, IAB, sindicatos e demais associações – como ASBEA, ABEA, ABAP E FNA – deverão se articular para convencer as autoridades de que não mais será possível conviver com fantasias improvisadas, convenientes às empreiteiras (sob a falsa égide da eficiência) que geraram os inacreditáveis “Projetos Básicos”, não por ironia, aqui entre aspas. Todas as obras urbanas são urgentes quando não urgentíssimas. E as piores são as inacabadas por tornarem-se exponencialmente mais onerosas, penalizando gerações. Descontinuidade e improvisação revelam a ausência de planos e o vácuo administrativo. Lacunas que trazem o ceticismo e a abstinência da cidadania.