O Núcleo Petrópolis do Departamento Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil (NAU Petrópolis) divulgou na quinta-feira, 16 de fevereiro, carta manifesto com críticas às obras inconclusas de recuperação da cidade após tragédia causada pelas fortes chuvas em 15 de fevereiro de 2022. Ao todo, 233 pessoas morreram com a tragédia e centenas perderam suas casas ou foram obrigadas a sair de suas casas.
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De acordo com o documento, passado o período crítico em que houve enorme e comovente mobilização da sociedade e de entes públicos, poucas obras foram concluídas, quase sempre com os vícios do passado e, prioritariamente, na área central do município.
“A falta de uma política habitacional efetiva que dialogue com o Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS) – uma ação que deve perpassar os diversos governos e respeite projetos já estudados – é a praxe. A utilização do aluguel social como política principal nesse tema não resolve o problema e apresenta indícios de estímulo à ocupação irresponsável em áreas de risco. O Plano Municipal de Redução de Riscos e Perigos, revisado em 2017, continua pouco divulgado e não é aplicado nos licenciamentos municipais, em razão de não ser uma norma regulamentada. Programas de regularização fundiária começam e são descontinuados a cada fim de governo. Na maior parte das vezes, os terrenos disponibilizados para a construção de habitação social não são adequados”, diz trecho do documento.
Confira, abaixo, a íntegra da Carta Manifesto do NAU Petrópolis
Um ano se passou… e o que mudou em Petrópolis?
Em 15 de fevereiro de 2023 fez um ano que um evento climático de grande intensidade se abateu sobre Petrópolis. Naquele dia, centenas de pessoas perderam suas vidas, muitos mais suas casas, seus amigos e parentes. Perdeu-se a própria vontade de permanecer onde viviam. Ainda, foram enormes os prejuízos materiais e a destruição dos espaços comuns. A partir dali, viveríamos a mesma dinâmica de recuperação lenta e inconclusa das muitas outras ocorrências anteriores, afinal, sempre foi assim. No entanto, nem os mais céticos poderiam imaginar a repetição dos eventos de forma tão virulenta quanto a anterior em tão pouco tempo, trazendo um jeito cada vez mais precário de viver a cidade: um ano depois, os fins de tarde chuvosos característicos na região nessa época são motivo de apreensão para toda a população. O medo ainda existe no íntimo de cada um.
Passado o período crítico em que houve enorme e comovente mobilização da sociedade e entes públicos através de cuidados com abrigos, doações, acolhimento às famílias, a limpeza da cidade e a preocupação com a mobilidade, seguiu-se um embate político entre o governo estadual e o municipal, em parte contaminado pela polarização causada pela proximidade das eleições. Nesse contexto, partiu-se para a execução de obras que foram, majoritariamente, de contenção de margens de rios e taludes de beira de rua, todos com bastante visibilidade à população, deixando as intervenções necessárias nas localidades mais afastadas para um segundo plano. Mesmo assim, poucas delas foram concluídas, quase sempre com os mesmos vícios do passado e prioritariamente na área central do município: asfaltamento generalizado nas ruas (intensificando a impermeabilização do solo), obras estruturais caras para contenção das margens dos rios (que não contemplam a questão ambiental e a função dos corpos hídricos), manutenção das vagas disponibilizadas para particulares (negando espaço para mobilidade ativa, tão necessária na cidade), ausência de tratamento junto aos rios que tragam uma resposta mais resiliente em eventos futuros (como parques lineares, a despeito de inúmeros estudos existentes na cidade). Apesar da comoção, o modus operandi do poder público parece seguir a sua usual cartilha.
A falta de uma política habitacional efetiva que dialogue com o Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS) – uma ação que deve perpassar os diversos governos e respeite projetos já estudados – é a praxe. A utilização do aluguel social como política principal nesse tema não resolve o problema e apresenta indícios de estímulo à ocupação irresponsável em áreas de risco. O Plano Municipal de Redução de Riscos e Perigos, revisado em 2017, continua pouco divulgado e não é aplicado nos licenciamentos municipais, em razão de não ser uma norma regulamentada. Programas de regularização fundiária começam e são descontinuados a cada fim de governo. Na maior parte das vezes, os terrenos disponibilizados para a construção de habitação social não são adequados. Não existe qualquer iniciativa no sentido de viabilizar a construção de pequenos empreendimentos, muito mais adequados à geomorfologia de Petrópolis e mais compatíveis às dinâmicas locais. Onde está o cadastro de imóveis vazios do município? Onde se aplicam os instrumentos propostos pelo Estatuto da Cidade que não permitem a acumulação de terras e imóveis para especulação imobiliária? Cadê a regulamentação da lei de ATHIS, que completa em maio um ano e possibilitaria a assistência técnica tão necessária à população de baixa renda? Parece que a inação em determinadas frentes fortalece a ideia de incapacidade municipal, ou é uma estratégia para manutenção de velhas práticas conservadoras de urbanização.
Contudo, as coisas mudaram. O planeta esquentou, os eventos climáticos extremos são cada vez mais frequentes e precisamos de novas posturas e soluções. A questão é que nós, como sociedade, continuamos a ignorar o meio, achando ainda que tudo podemos. Outra mentalidade deve tomar lugar em Petrópolis: é preciso responder aos novos desafios com soluções singulares que respeitem os ciclos naturais e que trabalhem com eles. Não dá pra pensar em cidades que impermeabilizam seu solo, desviam seus rios, cortam suas matas e ocupam suas encostas de maneira inconsequente. Não dá para sustentar um sistema que empurra uma parcela enorme da população para um jogo de roleta russa ambiental em que suas vidas dependem de um mero acaso climático. Uma outra Petrópolis precisa ser pensada, planejada e concretizada e, ao que parece, apenas será possível pela mobilização da sociedade.