Entrevista
CAU/RJ entrevista o Conselheiro Marcelo Perret
5 de setembro de 2013 |
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Entrevista com o Conselheiro e Coordenador da Comissão Ética e Disciplina – CED – do CAU/RJ, Marcelo Perret. “A fiscalização e as principais regras do exercício profissional são atribuições legais do CAU. Entretanto, outras entidades profissionais podem ser atuantes no trabalho exercido pelo CAU. O importante é que somos todos profissionais da mesma área e temos objetivos comuns que sempre vão convergir para o desenvolvimento da arquitetura e urbanismo no nosso país”, avalia Perret.
1- Nestes últimos 20 anos quais as transformações sofridas pela categoria?
Permita-me fazer uma avaliação um pouco mais elástica, pois tenho pai e mãe também arquitetos, ambos formados na mesma classe da antiga FNA, no Rio de Janeiro, nos anos 40. Eles fazem parte de uma das primeiras turmas de arquitetos e não engenheiros arquitetos, como anteriormente eram denominados, por isso tenho contato com a profissão desde criança.
Reportando-me, portanto, aos anos 50 em diante, vejo as principais transformações: o mercado de trabalho que naquela época era muito mais receptivo ao arquiteto – recordo meu pai se referindo aos vários convites de empresas interessadas em contratá-lo e, posteriormente, decidiu atuar na própria empresa onde obteve sucesso e reconhecimento.
O IAB, quando foi fundado há mais de 80 anos atrás, tinha como uma das suas bandeiras o incentivo ao aumento do número de arquitetos para suprir a carência do mercado.
A partir da década de 70, surgiu uma grande quantidade de faculdades públicas e privadas, ingressando no mercado número significativo de novos profissionais. Por consequência desse fato, e ao mesmo tempo com a retração do mercado, fruto das décadas perdidas, o arquiteto passou a enfrentar dificuldades de colocação, as oportunidades diminuíram e, proporcionalmente, o número de profissionais aumentou. Os arquitetos começaram a atuar maciçamente em oportunidades alternativas, as quais, sem dúvida, estavam aptos a assumir. Decoração, arquitetura de interiores, cenografia e outras atividades onde ainda havia um mercado pouco explorado são alguns exemplos. Diante deste cenário, a arquitetura que, anteriormente, focava mais objetivamente os projetos de edificações, foi colocando essa matéria em segundo plano.
O resultado foi o encolhimento e mesmo o desaparecimento de parte dos escritórios de arquitetura com foco em edificações. É com pesar que vivenciamos hoje, em um momento de grandes mudanças urbanas no Rio, significativa parte dos projetos tanto públicos quanto privados, sendo executados por escritórios estrangeiros. Apenas exemplificando alguns, o Museu do Amanhã e o Museu da Imagem e do Som para citar obras públicas cujo fenômeno também se repete na esfera privada. Na Avenida Atlântica serão construídos dois novos hotéis de altíssimo luxo, ambos projetados por arquitetos estrangeiros: o americano Chad Oppenheim e a iraquiana Zaha Hadid. Vários outros exemplos poderiam ser listados.
Não me oponho à concorrência com os profissionais estrangeiros, mas me parece que os brasileiros estão tendo dificuldade de se estabelecer em seu próprio país. Diferente do que ocorreu no século passado, quando nossos profissionais se projetavam aqui e no exterior. Tivemos o grande exemplo que foi Oscar Niemeyer, embora muitos outros também tenham tido reconhecimento mundial.
Cabe mencionar que esse fenômeno não ocorreu somente entre os arquitetos, profissões ligadas às ciências exatas também passaram pelo mesmo processo – engenheiros que saíam das faculdades com conhecimento tecnológico específico migraram em grande parte para o mercado financeiro, seguradoras e outras atividades afins.
Acredito que a área da construção civil foi das que mais sentiu esse fato e hoje, enfrenta a dificuldade de mão de obra adequada em todos os níveis.
2- Neste mesmo período, em função dos avanços tecnológicos em particular a informática, quais as mudanças mais expressivas ocorridas no exercício da profissão?
Métodos construtivos e novos materiais surgiram e evoluíram muito, nos dando um imenso número de ferramentas que permitiram considerável melhoria de qualidade, custo, segurança e rapidez na construção das edificações.
No que tange a informática, na qual a arquitetura teve como uma das principais ferramentas a introdução do programa CAD, posso afirmar que a facilidade de comunicação e expressão gráfica tiveram um papel de enorme valor e contribuição para agilizar, principalmente a fase executiva dos projetos. Por outro lado, vejo com certa inquietação o que me parece ser a despreocupação com a criatividade. Assim como tivemos o período do “fast food”, penso que “fast arquitetura” também foi equivocadamente introduzida a partir do uso inadequado do CAD, gerando a sensação de que os projetos seriam executados em tempo recorde, simplesmente por criar apresentações de desenhos de alta qualidade, e deixando a busca das melhores soluções e a consequente criatividade em segundo plano. Acredito que teremos, em breve, uma reavaliação da maior importância da nossa capacidade criativa. A informática deve ser utilizada como meio auxiliar fundamental, tanto no desenho quanto na execução de planilhas, e todos os outros meios tecnológicos essenciais como complemento para a insubstituível criação intelectual do projeto.
3- Como resultado das perguntas anteriores, como você avalia os novos rumos da profissão em relação ao exercício e também ao produto arquitetônico?
Acredito que a partir da criação do CAU, a arquitetura brasileira deverá entrar em uma fase de grande crescimento, o arquiteto vai retomar o orgulho como profissional e assumir com maior confiança o papel que deve ter e ser reconhecido pela sociedade. O ensino da arquitetura deverá ser pautado pelo estímulo à criatividade e o arquiteto /urbanista vai assumir o papel que lhe cabe, de coordenador, orientando os demais profissionais das necessidades de execução dos projetos complementares pautados no que dá origem às edificações que é o projeto arquitetônico.
4- Na sua opinião, como deve ser a posição de nossas entidades em relação a presença de escritórios e empresas de projetos estrangeiras no mercado de trabalho brasileiro?
Não devemos sublimar nem tratar esse tema com xenofobia, optando por nos manter fechados profissionalmente em um mundo globalizado, em constante evolução em todas as áreas, inclusive, na arquitetura.
Por outro lado, não podemos negar que países que experimentaram um desenvolvimento econômico, e, consequentemente, sociocultural superior ao Brasil nas últimas décadas, hoje dispõem de grandes escritórios de arquitetura. Com a abertura irrestrita para atuar no nosso país, poderá vir a se tornar um fator de estagnação ao nosso desenvolvimento profissional. Saber como lidar com esse acontecimento será um exercício de avaliação permanente do nosso conselho, procurando fazer as correções legais dentro de um quadro em permanente mutação. Precisamos estar atentos às nossas raízes culturais sem desprezar as experiências mundiais bem sucedidas, e tratarmos sem preconceito contribuições que venham acrescentar melhores padrões sociais à nossa população.
Devemos ter a grandeza de formar parcerias sempre que considerarmos conveniente – em áreas como sustentabilidade das edificações, acessibilidade, transportes, entre tantas outras – de forma a enriquecer a nossa profissão.
Há de se avaliar também a existência de acordos internacionais feitos em outras esferas governamentais que possam determinar algum tipo de atuação de profissionais de diferentes nacionalidades.
Outro fator que deve ser considerado é a reciprocidade, em alguns casos convergindo para uma situação distorcida. Como exemplo, podemos mencionar o caso de Portugal, onde os dentistas brasileiros foram autorizados a atuar naquele país e, em contrapartida, também se reivindica o mesmo tipo de facilidades para os arquitetos portugueses no Brasil. Ocorre que o dentista deve estar fisicamente no local para atendimento, diferente dos arquitetos que podem executar os projetos no exterior utilizando mão de obra do local onde o trabalho é desenvolvido. Esse tipo de atuação traria prejuízos ao mercado de trabalho no Brasil.
Conforme mencionei na primeira pergunta, a atividade na construção civil experimentou um período de encolhimento durante as décadas perdidas. Grandes escritórios de arquitetura como MM Roberto, Mindlin, Sérgio Bernardes, só para exemplificar alguns, encolheram ou mesmo desapareceram. Nesse mesmo período houve um fortalecimento desse ramo na Europa e Estados Unidos, principalmente. Lá, novos escritórios surgiram ou se fortaleceram, tanto pelo desenvolvimento socioeconômico local quanto por uma política comercial agressiva para além das fronteiras. Esse é um fato inegável e que deve ser avaliado por nós com muita cautela e realismo. Temos que criar algum tipo de mecanismo que permita aos arquitetos e urbanistas brasileiros recriarem estrutura necessária para conviver de forma saudável e igualitária com os profissionais estrangeiros. Do contrário, por consequência histórica, os estrangeiros vão assumir um papel de total liderança no nosso país e estaremos fadados a ocupar uma posição secundária.
5- Com a saída dos arquitetos e urbanistas do sistema CREA/CONFEA e a criação do CAU – lei Nº 12.378 – como deverá se dar a divisão de atuação das demais entidades dos arquitetos?
O CAU tem regras de atuação muito bem definidas e não acredito que haja qualquer tipo de conflito com as demais entidades, porém as parcerias serão sempre bem-vindas e mais do que isso, devem ser incentivadas. Hoje, não se trabalha sem pensar em atuar de forma multidisciplinar.
A fiscalização e as principais regras do exercício profissional são atribuições legais do CAU. Entretanto, sindicatos, IABs e todas as outras entidades profissionais devem e podem ser atuantes no trabalho exercido pelo CAU. O importante é que somos todos profissionais da mesma área e temos objetivos comuns que sempre vão convergir para o desenvolvimento da arquitetura e urbanismo no nosso país. Os debates profissionais que fazem parte da nossa essência devem continuar acontecendo da mesma maneira como sempre existiram. Não se faz uma boa arquitetura e urbanismo sem uma participação aberta e democrática, dando direito a todos que desejarem de expressar as suas opiniões.
O CAU tem o dever de trazer a sua contribuição para a dignificação profissional no que estiver ao seu alcance. A recente Resolução 51, de 13 de julho de 2013 do CAU/BR, define as atividades, atribuições e campos de atuação dos arquitetos e urbanistas dentro de um entendimento extremamente objetivo. Entretanto, é claro que em um conselho recém-criado, teremos diferentes pontos de vista e é inevitável que alguns acertos sejam feitos. Mas, o que é mais importante é que temos um conselho voltado especificamente para os arquitetos e urbanistas, o que nos faz crer que todos estejam visando o melhor possível para o crescimento da profissão.
O CREA para nós teve um papel importante durante um período, regulamentando e fazendo o papel de fiscalização que cabe aos conselhos. Hoje, o que ocorre no CREA é uma enorme variedade de profissões, muitas denominadas genericamente como engenharia, e várias aparentemente sem muita identidade entre as diversas especialidades, sendo difícil atender a todos os interesses. Nesse cenário, não mais cabia a nossa participação, havia uma série de interesses e participações antagônicas, ficando a arquitetura e urbanismo sem espaço suficiente para reivindicar e se impor como deve ser, colocando a profissão na desejável linha de atuação econômica, cultural e social. Tenho a convicção de que o CAU será um grande divisor de águas, no melhor sentido, tanto para os profissionais quanto para a sociedade em geral.
6- Como deverá ser equacionado o sombreamento da atuação profissional entre o arquiteto e o engenheiro civil, já que agora estão filiados em Conselhos próprios?
Por princípio, arquitetos e engenheiros civis são profissionais que se complementam, embora em algumas atividades possa haver o denominado sombreamento. A gama de atividades exercida pelo engenheiro civil é muito ampla; incluindo construção de barragens, pontes e estradas, para não citar uma infinidade de outras atribuições, pertinentes exclusivamente aos engenheiros civis. Atividades como estruturas, instalações e execução de obras prediais são também fundamentais ao bom exercício da arquitetura e urbanismo, e como não poderia deixar de ser, são matérias que tem que fazer parte do currículo das faculdades. Aptidões pessoais surgem naturalmente no exercício profissional e o indivíduo vai alcançando maior qualificação na medida em que vai exercendo suas atividades preferenciais. A engenharia civil é parceira inequívoca da arquitetura e do urbanismo, são complementares, e a evolução de ambas é histórica e indissolúvel.
Em relação à autoria de projetos das edificações, o CAU deve assumir um papel que atenda às antigas pretensões dos arquitetos e urbanistas, uma vez que nossa qualificação profissional tem como principal foco a qualidade dos projetos. Somos formados para atender ao conforto do ambiente, funcionalidade, segurança, métodos construtivos apropriados às condições, adequando o espaço construído às necessidades para as quais serão utilizados. Dentro dessa ótica, somente os arquitetos e urbanistas estão aptos a assumir a execução de projetos das edificações.
Minha sugestão é de que determinadas tipologias prediais, aquelas que por suas características atendam ao uso intenso da população, sejam estas públicas ou privadas, tenham obrigatoriamente seus projetos executados por arquitetos e urbanistas. Como exemplo, podemos citar: hospitais, escolas, centros comerciais, edifícios públicos, estabelecimentos que trabalhem com produções culturais ou de lazer, indústrias de uso intenso de mão de obra, entre outros. Edificações com essas características e que ultrapassem um determinado porte em termos de área construída estariam sujeitas a terem seus projetos executados por arquitetos e urbanistas. Os benefícios sociais resultantes da adequação dos projetos, mesmo que em princípio, possa criar algumas dificuldades que entendo como superáveis em curto prazo, certamente podem criar uma nova mentalidade e inegável evolução sociocultural para aquele público que vai fazer uso dessas edificações.
Serve como exemplo um determinado empresário que deseja implantar um hospital privado, com cerca de 2.000 m², em uma região carente de profissionais de arquitetura. Pela finalidade, tipo de uso e porte, seria razoável que este empreendedor procurasse, ainda que fora do seu município, um arquiteto e urbanista, com embasamento profissional necessário, que atendesse suas necessidades de um projeto adequado ao uso para o qual pretenda. Certamente se essa prática se difundisse através de uma legislação apropriada e factível, o lucro social também poderia trazer o lucro financeiro, ambos resultantes de soluções apropriadas que somente um arquiteto e urbanista tem condições de alcançar, e que uma boa parte da população ainda não tem consciência do resultado positivo possível.
7- Para efetiva aplicação das atribuições profissionais definidas pela Lei Nº 12.378, quais deverão ser as modificações no ensino de Arquitetura de modo a adequá-lo ao que estabelece a lei?
Há pontos de vista divergentes em relação a esse tema. Entendo que a arquitetura e urbanismo é uma profissão muito ampla para ser exercida integralmente por um único profissional. Com o passar do tempo teremos que pensar em algumas áreas de especializações já na fase da graduação, mas essa matéria tem sido exaustivamente discutida por colegas com ampla experiência na academia. Tenho certeza que, com base na lei, a proposta virá de forma a trazer estímulo e melhorar a qualificação dos futuros arquitetos e urbanistas.
8- Qual a sua opinião sobre a Política Habitacional e Urbana(s) desenvolvida(s) hoje no país?
Não há como culpar os arquitetos e urbanistas pela baixa qualidade das nossas cidades. O número de habitações precárias e o aumento da favelização nas grandes cidades se devem basicamente ao descaso do poder público. No que concerne ao arquiteto e urbanista, centenas de propostas tem sido apresentadas, sendo muito poucas concretizadas. Os concursos promovidos pelo IAB são o melhor exemplo dessa realidade. Os projetos são apresentados publicamente, com grande visibilidade, mas a execução destes raramente ocorre, seja parcialmente ou na sua integralidade. Falta determinação e vontade política para resolver os problemas das nossas cidades. A sociedade como todo tem por obrigação exigir a priorização desse tema onde o arquiteto e urbanista é ferramenta essencial.
9- Como você classifica a qualidade da produção arquitetônica e urbanística em nossas cidades e até onde vai a responsabilidade dos arquitetos nestes projetos e obras?
Quando instados a participar, temos apresentado soluções criativas e adequadas. Prefiro focar o principal problema urbano que nos aflige que são as comunidades carentes. As propostas de urbanização das nossas favelas são inúmeras, a maior parte com um conteúdo social muito bem resolvido, levando em consideração as características socioculturais e econômicas que acredito que temos assimilado de forma muito íntegra e positiva. O projeto vencedor para reurbanização da Rocinha é um bom exemplo nesse sentido, entretanto, o arquiteto e urbanista pode fazer ao que lhe cabe profissionalmente, mas se as demais soluções, como infraestrutura, segurança, educação e saúde não forem incorporadas, o projeto se torna incompleto e fadado ao fracasso. Na Rocinha foram inúmeros os arquitetos e urbanistas que dedicaram seu conhecimento aprofundando-se nos problemas que aquela população enfrenta. Inúmeras soluções foram apresentadas, muitas das quais envolvendo obrigatoriamente equipes multidisciplinares, entretanto, em termos de execução, infelizmente a resposta até agora foi muito tímida.
10- Quais deveriam ser as medidas concretas e objetivas de alteração da Lei Nº 8.666 para que seja garantido o Concurso Público de Projetos como forma usual de licitação e contratação?
Não considero que a Lei nº 8.666 seja adequada aos projetos arquitetônicos ou urbanísticos – seria impossível nestes casos garantir qualidade determinando o valor dos projetos. O exercício intelectual, fundamental para boas soluções na arquitetura e urbanismo, não são compatíveis com a obrigatoriedade de contratação pelo menor preço. É completamente diferente quando o Estado se propõe a compra de um bem onde é possível definir a especificação do produto com certa precisão. Comparando, seria como se contratar um pintor, um escritor ou um escultor pelo menor preço de mercado. Pode ser até que o resultado por acaso venha a ser acertado, mas a probabilidade é minimamente discutível. O que determina o bom resultado da criação intelectual é a avaliação do público ou o julgamento de uma equipe de especialistas críticos com o necessário conhecimento do tema.
Dentro desse princípio, acredito que o concurso de idéias é o melhor caminho para a boa arquitetura e urbanismo. Uma vez identificados os objetivos e definido um programa, as soluções arquitetônicas virão através da melhor interpretação que cada um possa oferecer, e nesse caso, considero o concurso como o melhor meio para a avaliação mais apropriada a cada situação.