A RUÍNA COMO MÉTODO

Ao que parece, a questão do “destombamento” do casarão na esquina da rua dos Inválidos com a rua Riachuelo, antigo Solar do Visconde de São Lourenço, está longe de um desfecho. Acionada por uma liminar do Ministério Público Federal (MPF), a Justiça Federal embargou no último dia 16, a demolição pretendida pelo Instituto Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Tudo começou com uma nota da presidente do Instituto, publicada no Diário Oficial da União, em 25 de janeiro, reportando o destombamento, decidido no âmbito de um processo administrativo. Mas o Conselho Consultivo do órgão simplesmente não foi ouvido. A medida provocou reações antagônicas. Uns disseram que finalmente se poderia dar uma destinação econômica para o terreno de 1.200m2, há tantos anos ocupado por ruínas, inclusive com risco para os pedestres. Outros lamentaram o triste destino de mais um integrante do patrimônio histórico carioca e nacional. Lia Motta, arquiteta e urbanista especializada em patrimônio cultural, vê mais esse destombamento como parte do que classifica como “produção de ruínas”, com a nítida finalidade de disponibilizar os terrenos para o mercado imobiliário. Menciona também a existência de projeto de restauração detalhado do sobrado, elaborado pelo IPHAN.

A recente iniciativa do MPF de suspender a demolição não foi suficiente para tranquilizar os que se preocupam com a preservação da memória e do patrimônio cultural. E a maneira arbitrária com que a presidente do IPHAN, Larissa Rodrigues Peixoto Dutra, conduziu o “destombamento” ligou a luz vermelha. Em dezembro de 2021, ela assumiu o cargo, que esteve vago por cinco meses, depois que o presidente Jair Bolsonaro interferiu na instituição, como represália contra a interdição de uma obra de seu amigo Luciano Hang, dono da rede Havan. O MPF chegou a pedir o afastamento de Larissa, alegando ausência de expertise para exercer a função, mas até agora nada aconteceu. O receio é que, no cenário geral de esvaziamento e desmobilização das instituições de patrimônio, nova porteira tenha sido aberta para a boiada passar – produção de ruínas, seguida de “destombamento”.

Produzindo uma ruína – Em sua dissertação para o mestrado em Preservação do Patrimônio Cultural do IPHAN, Flávia Moreira Xavier conta a história da casa, tombada em 1938, como “exemplar dos mais característicos e valiosos da arquitetura residencial urbana do Rio de Janeiro no século XVIII”.

Seu primeiro proprietário foi Antônio da Cunha, oficial das ordenanças, que a vendeu em 1820 para Francisco Targine, Visconde de São Lourenço, conselheiro de D. João VI, que empreendeu ali uma grande reforma. Depois da morte do Visconde, a casa sediou o Colégio Marinho.

Já início dos anos 1940, sua conservação estava comprometida, com o prédio ocupado por lojas no térreo e utilizado como casa de cômodos nos dois pavimentos superiores – cerca de 50 quartos separados por tabiques, em más condições de higiene. Acionado pelo IPHAN, o proprietário alegou não ter condições financeiras para arcar com as obras necessárias. O próprio Iphan, então, por reconhecer o valor cultural e a importância pública do bem, encarregou-se das obras, no final dos anos 1950.

Ao longo da década de 1970, relata Flávia, a casa foi se arruinando. Em 1982, o proprietário solicitou ao IPHAN o cancelamento do tombamento ou a desapropriação do bem, alegando que o edifício se encontrava em ruínas por causa dos cortiços lá instalados, culpando o tombamento e reclamando indenização pelo “esvaziamento econômico da propriedade”. A dissertação menciona ainda uma proposta de desapropriação pela Academia Brasileira de Educação, com o objetivo de restaurar o imóvel e instalar ali sua sede, mas a negociação não avançou e a construção foi sendo lentamente desfigurada. Finalmente, na década de 1990, um incêndio acelerou a degradação do imóvel, restando somente as fachadas externas arruinadas, condição que só piorou até hoje.

Não são poucos os motivos que contribuem para essa situação, que se repete em quase todas as cidades brasileiras. Falta fiscalização por parte das prefeituras, instrumentos urbanísticos que responsabilizariam o proprietário impedindo o abandono dos imóveis não são aplicados, são precárias a educação patrimonial e a divulgação. Bens culturais, consequentemente, não são tratados como ativos econômicos e o tombamento ou as modalidades de tutela acabam sendo vistos como estorvo e obstáculo ao desenvolvimento urbano.

É preocupante o posicionamento do IPHAN que, contrariando o legado institucional acumulado de priorizar o interesse público, a memória e a identidade cultural, agora alimenta o esquecimento, as decisões arbitrárias e sem transparência, em favor apenas do interesse privado.